GAP AND FOLD / VÃO E VINCO
COLLECTIVE EXHIBITION // YOHANNAH DE OLIVEIRA, CHIARA SENGBERG, DUDA BREDA, FERNANDA LUZ, JOÃO BALARDIN, MARIA BARBOSA, NADIRA YANEZ, VITOR MARTINS DIAS, YUMI SHIMADA
ESPAÇO REPÚBLICA EXPOSITIVO - SÃO PAULO - BR
CURATED BY JULIA CAVAZZINI
MARCH 29TH TO APRIL 05TH, 2025
V Ã O E V I N C O
Curadoria por Julia Cavazzini
"Artigo I. Espécies de seres que ligam com vínculos
As forças que conectam o universo são Deus, o Demônio, o Espírito, o Ser Animado, a Natureza, a Sorte, a Fortuna e, finalmente, o Fado. Esse vínculo universal, que não pode ser designado por um único nome, não se limita ao corpo ou aos sentidos físicos, pois o corpo não manifesta uma força que
emana exclusivamente dele. Metaforicamente, esse vínculo é chamado de 'mão', que, com múltiplas preparações, se dobra e se inclina para estabelecer conexões."
(BRUNO, 1591)
A reflexão de Giordano Bruno, em seu tratado De Vinculis in Genere , convida-nos a explorar a natureza dos vínculos que tecem a trama do universo. Escrito no final do século XVI, após o fim da Idade Média — período marcado por hierarquias rígidas e um pensamento dominado pelo teocentrismo — o tratado ganha relevância ao propor uma visão dinâmica e interconectada do mundo. Reconhecer o contexto em que foi escrito reforça a potência de refletir sobre os vínculos em tempos autoritários, nos quais as relações se manifestam, ainda que de forma tímida. Essa ideia ressoa no ofício do artista, que cria conexões com a matéria, entre materiais, com seus semelhantes e
entre eles, construindo laços que transcendem o individual e alcançam o coletivo.
A mostra coletiva Vão e Vinco apresenta, como possíveis respostas a esses vínculos, obras de Chiara Sengberg, Duda Breda, Fernanda Luz, João Balardin, Maria Barbosa, Nadira Yanez, Vitor
Martins Dias, Yohannah de Oliveira e Yumi Shimada . A exposição convida o espectador a observar um grupo de artistas que escolheu se encontrar periodicamente para aprender coletivamente, apesar
das diferenças em suas linguagens, contextos e materiais. Ao percorrer o espaço República, que integra os trabalhos ao ambiente, destacam-se dois eixos comuns: uma reflexão sobre o espaço e novas formas de paisagem, bem como as marcas deixadas pelo toque e pelas ações da natureza ao
longo do tempo.
O vão, conceito consagrado pelos movimentos modernos da arquitetura, revela-se poeticamente potente na exposição, destacando a complexidade da ocupação do espaço. Ele é uma abertura, uma saída ou uma paisagem que depende do outro para existir — afinal, o vão só se concretiza entre dois
pontos de apoio. Nas obras de Nadira e Yumi , essa lacuna torna-se um dispositivo de retenção da memória. Yumi coleciona fragmentos de papel ao longo dos anos, criando esculturas que, embora
tridimensionais, parecem desenhos suspensos na parede. Sua leveza balança com os movimentos dos corpos no espaço, refletindo um equilíbrio delicado entre preservação e exposição. Já Nadira molda formas que guardam os traços de sua origem, lembrando-nos da terra como matéria indomável, sujeita ao tempo. Enquanto Yumi incorpora a parede como elemento compositivo da
imagem, Nadira a transforma em suporte físico, explorando peso, contrapeso, luz e sombra.
João e Chiara exploram o vão como um intervalo que não se encerra, mas propõe movimento e transformação. Chiara suspende peças de tangram, evocando não apenas o espaço entre as formas,
mas também a recombinação infinita da memória. O jogo e a lembrança se entrelaçam na metáfora do tangram, sugerindo novos significados a partir das mesmas estruturas. Já João desmonta uma
cadeira, carregada pelo uso e pela história de quem nela sentou, revelando a presença dos vãos na mobília espaçosa de suas pinturas. O espaço entre o assento e o apoio das costas estrutura a relação do corpo com a terra, assim como a distância entre uma cadeira e outra reflete a conexão entre o eu e o outro. Em ambos os casos, a natureza da combinação transforma a obra em um monumento de aprendizado em constante movimento. Essa relação com o espaço dialoga com o que Georges Perec escreve em Espécies de Espaços:
"Penduro um quadro na parede. Logo me esqueço de que há uma parede ali. (...) A parede já não é aquilo que delimita e define o lugar onde vivo (...), já não é mais do que um suporte para o quadro. Mas também me esqueço do quadro, já não o olho, já não sei olhá-lo. (...) Os quadros eliminam as paredes. Mas as paredes matam os quadros."
(PEREC, 1973-1974)
Atravessar o vão é perceber-se em relação, percorrendo uma paisagem em movimento entre pontos de contato, sejam eles figurativos (como a memória) ou físicos (como a parede). Se o vão é o intervalo que sugere ação, o vinco é sua inscrição na superfície — a marca do toque, do peso do corpo e da repetição que deixa registros. Um exemplo é a ruga de expressão, que nada mais é do que uma dobra do tempo, um testemunho de gestos repetidos. Seja um sorriso que deixa sua marca ou uma testa franzida que revela linhas de preocupação, o corpo carrega em sua superfície a história de suas ações. Da mesma forma, a natureza exibe suas marcas: uma cadeia montanhosa retrata o movimento das placas tectônicas, enquanto um vulcão guarda em seu entorno os vincos da lava solidificada. Até mesmo a efemeridade de uma nuvem carrega, em sua aparência, as dobras causadas pelo vento em suas gotículas de água. Nas pinturas de Vitor , os vincos nos lençóis são vestígios de presença, evidências de um contato que, na permanência da tinta, emolduram uma paisagem do efêmero. As dobras e sombras dos tecidos acentuam a tensão entre estabilidade e desejo, entre a materialidade e o gesto. Já Maria explora a relação entre imagem e matéria, cobrindo figuras anteriores para criar novas paisagens. A cobertura transforma-se em textura, e o que deveria esconder acaba revelando ainda mais o prazer do toque antes mesmo do olhar.
Há vestígios de paisagens efêmeras também nas obras de Fernanda e Yohannah . Fernanda retrata incêndios, onde o fogo age como um vinco no tempo, transformando horizontes naturais e urbanos. Seu suporte transparente incorpora o espaço República, apropriando-se das dobras da sala e do branco da parede que se transforma a cada novo lugar. Yohannah, por sua vez, habita entre a
abstração e o figurativo, capturando a força da água e a formação de céus chuvosos. Na maresia, os vincos efêmeros surgem quando a crista da onda cria uma dobra em seu interior, enquanto os mais
permanentes marcam a paisagem costeira, contando até onde o mar se estende. A onda, assim como o fogo, é uma materialidade da natureza que deixa marcas de seus próprios corpos nas topografias que atravessa. Por fim, também em relação aos tecidos, coberturas e paisagens, Duda explora o vinco como uma
dobra marcada no tempo. Suas fotografias mostram a ação de jogar cândida sobre o tecido, paralelamente a um passado reprimido em uma infância de influências católicas. O lençol revela um
desejo que tentou se apagar, mas que, através de um rastro matérico, permanece no tecido ou no imaginário. O vinco, aqui, é uma fenda no tempo, onde se inscrevem camadas de existência nessa espécie de fantasma do tempo.
"Artigo II. Efeito daquele que liga por vínculo
Esta é aquela força que, por estabelecer vínculos, os platônicos dizem que adorna a mente com a ordem das ideias; que preenche o espírito com a sequência dos raciocínios e com discursos harmoniosos; que fecunda a natureza com sementes variadas; que dá forma à matéria com uma infinidade de condições; que vivifica, aplaca, acaricia, estimula todas as coisas; que move, abre, ilumina, purga, satisfaz, completa todas as coisas."
(BRUNO, 1591)
Se o vão revela o espaço e o vinco registra, o vínculo persiste na união. O que perpassa todas as obras nesta exposição ainda é a decisão dos artistas de construir juntos um espaço de convivência e troca. Neste espaço compartilhado, entre vãos, vincos e vínculos, cada obra é um elo entre memórias individuais e histórias coletivas. E, ao final, a repetição da letra 'v' — vão, vinco, vínculo — força os
dentes a pressionarem os lábios, criando a rigidez necessária para produzir o som. Um esforço silencioso e cotidiano, um compromisso com a comunicação e a criação. Mas, num instante, essa tensão se dissolve, e o rosto se abre em um sorriso discreto, como quem reconhece, enfim, a beleza do esforço que os lábios fazem ao tentar comunicar, assim como a satisfação que o artista encontra
ao criar junto.
Julia Cavazzini, 2025
G A P A N D F O L D
Curated by Julia Cavazinni
Article I. Species of beings that bind through bonds
The forces that connect the universe are God, the Devil, the Spirit, the Living Being, Nature, Luck, Fortune, and finally, Fate. This universal bond, which cannot be designated by a single name, is not limited to the body or to physical senses, for the body does not manifest a force that emanates exclusively from it. Metaphorically, this bond is called a “hand,” which, through multiple preparations, bends and inclines to establish connections.
(BRUNO, 1591)
Giordano Bruno’s reflection, in his treatise De Vinculis in Genere, invites us to explore the nature of the bonds that weave the fabric of the universe. Written at the end of the 16th century, after the close of the Middle Ages—a period marked by rigid hierarchies and a worldview dominated by theocentrism—the treatise gains relevance by proposing a dynamic and interconnected vision of the world. Recognizing the context in which it was written reinforces the power of reflecting on bonds in authoritarian times, in which relationships still manifest, even if timidly. This idea resonates with the work of the artist, who creates connections with matter, between materials, with their peers and among them, building ties that transcend the individual and reach the collective.
The group exhibition Vão e Vinco presents, as possible responses to these bonds, works by Chiara Sengberg, Duda Breda, Fernanda Luz, João Balardin, Maria Barbosa, Nadira Yanez, Vitor Martins Dias, Yohannah de Oliveira, and Yumi Shimada. The exhibition invites the viewer to observe a group of artists who chose to meet periodically to learn collectively, despite differences in language, context, and material. As one moves through the República space, which integrates the artworks into its environment, two common threads stand out: a reflection on space and new forms of landscape, as well as the marks left by touch and by nature’s actions over time.
The vão (gap or span), a concept consecrated by the modern architectural movements, reveals itself poetically powerful in the exhibition, highlighting the complexity of spatial occupation. It is an opening, an exit, or a landscape that depends on the other to exist—after all, the vão only comes into being between two points of support. In the works of Nadira and Yumi, this void becomes a device for retaining memory. Yumi collects fragments of paper over the years, creating sculptures that, though three-dimensional, appear as drawings suspended on the wall. Their lightness sways with the movement of bodies in the space, reflecting a delicate balance between preservation and exposure. Nadira, in turn, shapes forms that retain traces of their origin, reminding us of the earth as untamable matter, subject to time. While Yumi incorporates the wall as a compositional element of the image, Nadira transforms it into a physical support, exploring weight, counterweight, light, and shadow.
João and Chiara explore the vão as an interval that does not end, but rather proposes movement and transformation. Chiara suspends tangram pieces, evoking not only the space between forms but also the infinite recombination of memory. Play and remembrance intertwine in the metaphor of the tangram, suggesting new meanings from the same structures. João, meanwhile, dismantles a chair, laden with use and the history of those who sat in it, revealing the presence of gaps in the spacious furniture of his paintings. The space between the seat and the backrest structures the body's relation to the earth, just as the distance between one chair and another reflects the connection between self and other. In both cases, the nature of the combination transforms the work into a monument of learning in constant motion. This relationship with space dialogues with what Georges Perec writes in Species of Spaces:
“I hang a picture on the wall. I soon forget there is a wall there. (...)
The wall is no longer that which defines the place where I live (...),
it is nothing more than a support for the picture. But I also forget the picture,
I no longer look at it, no longer know how to look at it. (...)
Pictures eliminate walls. But walls kill pictures.”
(PEREC, 1973–1974)
To pass through the vão is to perceive oneself in relation, traversing a moving landscape between points of contact, whether figurative (like memory) or physical (like a wall). If the vão is the interval that suggests action, the vinco (crease) is its inscription on the surface—the mark of touch, of the body’s weight, and of repetition that leaves records. One example is an expression line, which is nothing more than a fold of time, a testimony of repeated gestures. Whether a smile that leaves its mark or a furrowed brow that reveals lines of concern, the body carries in its surface the history of its actions. Likewise, nature displays its marks: a mountain range portrays the movement of tectonic plates, while a volcano holds around it the creases of solidified lava. Even the fleetingness of a cloud carries, in its appearance, the folds caused by the wind in its droplets of water.
In Vitor’s paintings, the creases in bedsheets are vestiges of presence, evidences of contact that, in the permanence of paint, frame a landscape of the ephemeral. The folds and shadows of the fabrics accentuate the tension between stability and desire, between materiality and gesture. Maria, in turn, explores the relationship between image and matter, covering previous figures to create new landscapes. The covering transforms into texture, and what should hide ends up revealing even more the pleasure of touch before sight.
There are also traces of ephemeral landscapes in the works of Fernanda and Yohannah. Fernanda depicts fires, where flame acts as a crease in time, transforming both natural and urban horizons. Her transparent support incorporates the República space, appropriating the room’s folds and the white of the wall, which changes with each new site. Yohannah, in turn, inhabits a space between abstraction and figuration, capturing the force of water and the formation of rainy skies. In sea spray, the ephemeral creases emerge when the crest of a wave folds within itself, while more permanent ones mark the coastal landscape, telling us how far the sea has reached. The wave, like fire, is a materiality of nature that leaves imprints of its own body on the topographies it crosses.
Finally, also in relation to fabric, coverings, and landscapes, Duda explores the vinco as a marked fold in time. Her photographs show the act of pouring bleach over cloth, parallel to a repressed past rooted in a Catholic-influenced childhood. The bedsheet reveals a desire that tried to be erased but, through a material trace, remains on the fabric or in the imagination. The vinco here is a fissure in time, where layers of existence inscribe themselves into this kind of ghost of time.
Article II. Effect of the one who binds through bonds
This is the force that, by establishing bonds, the Platonists say adorns the mind with the order of ideas; fills the spirit with the sequence of reasonings and harmonious discourses; fertilizes nature with varied seeds; shapes matter with an infinity of conditions; enlivens, soothes, caresses, stimulates all things; moves, opens, illuminates, purifies, satisfies, completes all things.
(BRUNO, 1591)
If the vão reveals space and the vinco records it, the vínculo (bond) persists in union. What runs through all the works in this exhibition is the artists’ decision to build a space of coexistence and exchange together. In this shared space, among vãos, vincos, and vínculos, each work is a link between individual memories and collective histories. And, in the end, the repetition of the letter “v”— vão, vinco, vínculo —forces the teeth to press against the lips, creating the necessary tension to produce sound. A silent and everyday effort, a commitment to communication and creation. But in an instant, this tension dissolves, and the face opens in a discreet smile, as if recognizing, at last, the beauty in the effort the lips make to communicate—just as the artist finds satisfaction in creating together.
Julia Cavazzini, 2025